Instado a escrever a partir do registro de furto de bico de mangueira de incêndio em um condomínio, me pus a pensar o que poderia acrescentar numa perspectiva de pacificação social e postura cidadã; tecer perguntas e incitar a discussão. Neste contexto, contar casos, em si importantes para medirmos a temperatura social das médias e grandes cidades brasileiras, talvez seja falar mais do mesmo, e já há o bastante. Na cidade de São Paulo estamos inseridos em uma zona metropolitana urbanizada de 39 municípios, com 20 milhões de habitantes.

Com a devida vênia, contextualizando-se o tema, mangueira inspira a imagem de canal, de fluxo, de conexão, de rede. Sob um olhar sistêmico, quem estaria no bico da mangueira? Sempre pessoas. Através das edificações onde projetamos o viver, residir e trabalhar passa todo tipo de contato entre as pessoas. Pense-se em três. O mais comum é o aéreo, contra o que, em caso de abusos,pouco se pode fazer – São Paulo traz exemplos recordes de ruído urbano e é a segunda maior preocupação dos paulistanos, após a segurança. O seguinte seria a água, símbolo de fluidez, incompressível. E a eletricidade, que junto com os mais diversos sinais passa pelo fio, e pelo sem fio e resulta interconectar cada um ao todo, todo o tempo, em qualquer lugar – este é um paradigma a ser considerado.

O tema das áreas comuns nas casas, nas empresas, nas ruas, nos equipamentos urbanos e especialmente nos condomínios (com patrimônio comum interdependente), onde a proximidade e o encontro são obrigatórios, tem aparecido na agenda social na atualidade. O cuidado com todo tipo de área comum é traduzido por educação, educação social necessária especificamente para viver no ambiente condominial. E há algumas outras perguntasa fazer. Qual cultura permeia o compartilhamento de áreas privativas em uma área comum na tipologia condominial?O que nos levaria, individualmente, a ser ou não ser lenientes ao percebermos o furto de partes que a todos pertence? E o que fazer na hipótese de reagir eficazmente e positivamente neste contexto? O contexto descrito é o de sempre, a pacificação social.

A Justiça e a legalidade dão guarida a cada comunidade condominial para o exercício de seus direitos. Há sim todo um ferramental jurídico excelente para ser aplicado. A receita é simples, no plano interno registrar, colher elementos que permitam conectar o ato ao dano através de um nexo de causalidade – advertir, multar, processar judicialmente por atos ilegais e abuso de direito no uso da propriedade, e no limite, limitar comportamentos. No plano externo se assim podemos chamar, chamar a polícia e requerer a abertura de inquérito, neste caso policial, e averiguar a materialidade do crime, os indícios de sua autoria e proceder à judicialização penal se forem o caso. Independentemente destas ferramentas legais, o que se deve procurar é apurar com profundidade cada ocorrência para buscar construir uma estratégia personalizada caso a caso, dependente dos fatos e dependente do histórico de cada envolvido participante e da própria comunidade.

Vivemos em um contexto muito complexo, em uma urbanização aparentemente caótica, e segundo as estatísticas, das regiões mais violentas na humanidade. Sim, já houve outros tempos piores na história da humanidade, e estamos hoje aqui,sim, em um lugar muito violento. E mais, não temos acesso aos números, ao mapeamento da violência, ao saber realmente o que está acontecendo. Com esse saber, talvez estivessem mais próximos da possibilidade de participar colaborativamente com o planejamento e empreendimento de políticas públicas necessárias para o trato do tema. Esta realidade se reproduz, ou se espelha, ou se reflete sistemicamente na cidade, passando pelos bairros e regiões do município e adentra também os condomínios; e conta com o poder executivo municipal, e do aparato que guarnece o poder de polícia urbano. Esta tipologia urbanística, juntamente com os loteamentos fechados, e os“bairros planejados”, tem tomado conta do jeito de viver presente, em pequenas comunidades protegidas – aldeias urbanas. Ao perceber que a proteção ao externo é falha, que os comportamentos ilegais também se produzem internamente, e que quando os furtos acontecem nas áreas comuns do condomínio praticadas por moradores ou visitantes, o primeiro instinto será de proteger seu espaço privativo. É importante se saber que a violência física já faz alguns anos tem permeado as comunidades condominiais. Já temos de pequenos furtos, até as maiores agressões físicas, e em um ambiente de selvageria protegida. As câmaras não dão conta da criatividade dos furtadores. Será que passaremos a colocá-las em todos os corredores e nas portas de nossas casas, talvez blindadas? Que cultura produzimos com estes encaminhamentos? Cultura de inclusão ou exclusão? A expulsão do condômino antissocial não tem previsão legal em nosso país, e coloca limites claros em quem faz parte, ou não, da comunidade – todo proprietário faz obrigatoriamente parte.

Por outro lado,quais remédios poderemos indicar para que outros rumos conduzam as estratégias do Síndico e da comunidade?O resgatedesta confiança se traduz um desafio super atual. Fala-se muito de política, que tal ponderar o condomínio social democrata, participativo na construção de soluções?Pensar no empoderamento das pessoas e da organização fundada na participação interativa cotidiana de todas as pessoas? O dever do cuidado tão defendido pelos filósofos, traduzido no direito pelo dever de zelo no trato das pessoas e coisas deve ser aplicado em todos os detalhes deste cotidiano. Valorizar este cuidado corrobora com o sentimento de pertença e a apreciação das estruturas físicas do condomínio. Daí o cuidado provoca um círculo virtuoso.

O planejamento inclusive das estruturas físicas, também pode colaborar ou não com a proximidade entre as pessoas, com a visibilidade dos contextos condominiais, com a otimização do uso das áreas comuns, com uma estética que favoreça o encontro, o apreço e o cuidado. Porém, ao que tanto a sociedade pede, o mercado oferece, e os arquitetos priorizam nos projetos, é justamente o contrário: a estética preocupada com a violência e a segurança, uma arquitetura também chamada de arquitetura do medo e da intimidação, com a compartimentação dos espaços, uma vigília constante e dificuldade de livre uso.

Afinal, em condomínios, é dever de o condômino usar das suas unidades e das áreas comuns conforme sua destinação, e conquanto não exclua a utilização dos demais compossuidores, igualitariamente. Nas posturas atitudinais, de comportamento, não pode ser prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores ou aos bons costumes. Assim nos fala o Código Civil (quando trata de direitos de Vizinhança e dos Condominiais), e harmonicamente com o Estatuto das Cidades. A vizinhança deve receber tratamento especializado, com vistas à construção de uma sustentabilidade que considere as dimensões social e ambiental urbana.

O condomínio como uma situação de vizinhança especial pode ser incentivado a combinar solidariedade e tolerância. A diferença humana e cidadã devem ser vista como oportunidade, e a comunicação e diálogo ser efervescidas para que se alcance um denominador comum em um processo de mediação coletiva. Porém, há de ter um ponto de partida, e este ponto de partida é o do presente, dentro da mais objetiva análise da situação atual, com seus regramentos que na maioria das vezes precisam ser reformulados, humanizados, buscando-se compatibilizar as expectativas, desejos e benefícios de cada um. A alteridade, o ouvir o outro, promove este contato, que por sua vez possibilita a essência de viver na cidade, que é “viver junto”.

A principal via de conexão, o olhar, despotencializado na contemporaneidade, é o que pode trazer uma nova visão aos problemas que estamos vivendo. Quando você olha fundo no outro, e se abre para ser olhado gerando uma proximidade humanizada, qualquer outro e você mesmo percebem a inadmissibilidade e insuportabilidade de qualquer tipo de violência. Assim, nesta hipótese, qual o diagnóstico? A distância. Qual o prognóstico? A secura nas relações. Qual o tratamento? O olhar, a aproximação, e desse conjunto o diálogo. Já diria algum jargão: “se não funcionar, aumente a dose de proximidade”.

Michel Rosenthal Wagner

Mestre em Direito e autor da obra Situações de Vizinhança no Condomínio Edilício, desenvolvimento sustentável das cidades, solução de conflitos, mediação e paz social.
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